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terça-feira, 30 de abril de 2013

óculos para neblina ~~

viste?
aceitar o medo
é a melhor escolha
para fazer nascer
poesia.

assim,
engatilhada
com verbos seguidos
esfomeados
por revelação
recém-aterrissada.

quanto mais impossível
mais se vislumbra
a possibilidade
de mudar o mundo

que seja o mundo
do estômago
do peito
da cova muscular
pranto.

"Para que serve o teatro?"


ARTE E POLÍTICA
Para o diretor do Schaubühne de Berlim, não há teatro sem investimento público e sem ancoradouro na sociedade. No artigo, ele analisa as condições “materiais e espirituais” de uma renovação do teatro, que sofre não só com a austeridade, mas também com sua própria tendência de se deixar levar pela ideologia dominante
por Thomas Ostermeier


(Cena de 100% Zurich, espetáculo do grupo alemão Rimini Protokoll)

Nas pretensas democracias ocidentais, a garantia do interesse geral obriga o Estado a aumentar impostos, cujo produto será redestinado a diversas instituições de acordo com o que elas consideram justo ou indispensável. Que me perdoem a banalidade deste preâmbulo, mas parece importante lembrar como a noção de missão pública se inscreve no próprio cerne de nossas sociedades, a fim de permitir aos indivíduos e aos grupos sociais... o que exatamente? Ser feliz? Fazer sucesso? Aprender? Abrir-se para outras ideias, outras pessoas, outros coletivos?

A marcha triunfal do neoliberalismo, iniciada em Chicago nos anos 1970 e acelerada pela queda do “socialismo real”, traduziu-se na desregulamentação dos mercados financeiros, mas também na privatização de serviços e de instituições que dependiam, até então, da esfera pública. Essa mudança de paradigma não é estranha à perda de legitimidade do teatro durante o mesmo período. Grande parte da esquerda da Europa ocidental, tradicionalmente cética em relação às instituições, para não dizer antiestadismo, encontra-se, então, na dolorosa obrigação de defender o Estado contra a ofensiva dos novos discípulos do mercado.

Quanto a mim, sonho com uma sociedade livre do jugo da propriedade privada, na qual os bens e as riquezas pertençam igualitariamente a cada um de seus membros. Infelizmente, estamos muito longe dessa utopia. E o que é pior, a ideologia do mercado faz a suspeita de totalitarismo recair sobre qualquer reflexão a respeito desse assunto. Até mesmo o princípio de uma redistribuição parcial das riquezas, estabelecida pela burguesia conquistadora nos séculos XVIII e XIX, encontra-se doravante em risco.

Pouco tempo após a criação do Reich, em 1870-1871, durante o período conhecido como “dos fundadores”, teve origem – ou pelo menos foi institucionalizado, portanto, delegado à responsabilidade do poder público – tudo o que está hoje gravemente ameaçado: os transportes públicos, as escolas, as universidades, as bibliotecas, os parques etc.Na época, a burguesia considerava o Estado como a expressão de sua força material e espiritual. Atualmente, ela só o vê como obstáculo à sua prosperidade. Os estabelecimentos culturais com financiamentos públicos, que outrora provocavam a arrogância das elites, perderam na mesma ocasião uma boa parte de sua legitimidade.

Na Alemanha, desde 1992, dezoito teatros tiveram de fechar suas portas ou se fundir. Diferentemente do que se faz na França, o financiamento da cultura pertence exclusivamente aos Länders [estados]eàs municipalidades. Apesar de Berlim se vangloriar de ser um paraíso para jovens artistas, seu orçamento para a cultura não excede 2% dos gastos públicos. Se considerarmos que a parte do teatro, inclusive a ópera, representa apenas 1,1% do orçamento (deste, 0,7% somente para o teatro), os debates sobre cortes orçamentários suplementares parecem extravagantes. As proporções não são mais gloriosas em Hamburgo, segunda cidade do país: 2,1% para a cultura, 0,9% para o teatro e a ópera. Uma rápida olhada na situação francesa indica que, em 2013, os gastos públicos previstos para a cultura estão sendo reduzidos em 4,3% com relação ao ano anterior.


Por uma outra história da sociedade

A burguesia lançou ao mar a ideia fundadora de uma representação de si mesma orientada para algo diferente da avidez pelo ganho, enquanto o ceticismo visceral – e com frequência justificado – das classes populares contra esses “templos burgueses” encontra-se em uníssono sem recursos. Há um ano e meio, um motorista de táxi de Amsterdã, ao saber que trabalho no teatro, me disse sarcasticamente: “Now it’s payback time!” (É a hora da revanche!). O novo governo acabava de iniciar uma operação de desertificação inédita na paisagem cultural holandesa.

É esse o clima que se propaga, hoje, na Europa. Perceptível em graus variados em todo o continente, o desmantelamento da cultura aumentou também na Itália e, sobretudo, na Hungria, onde o anti-intelectualismo da classe dirigente, misturado a palavras de ordem abertamente antissemitas e homofóbicas, levou à substituição do diretor do Teatro Nacional de Budapeste por um mercenário do Fidesz, partido da direita nacionalista.

A esse fenômeno, soma-se outro, que gangrena o teatro há uns dez anos. Sob o pretexto de estimular as estruturas independentes, os protagonistas desse meio se insurgem uns contra os outros. Os fomentadores do teatro livre, ou off,clamam de todas as maneiras que fariam um melhor uso das somas devoradas pelas instituições públicas, fazendo, assim, sem dúvida a contragosto, uma apologia do espírito da época: nós lhes oferecemos mais arte por menos dinheiro. Não é de espantar que essa retórica fratricida encontre um eco crescente junto a conselhos municipais e dirigentes culturais. Efetivamente, o “teatro livre” apresenta uma dupla vantagem: seu nome atraente evoca a juventude, a não submissão e o romantismo, ao mesmo tempo que se presta a financiamentos de uma extraordinária flexibilidade. Na verdade, nada impede os que tomam decisões políticas de anularem suas subvenções ou de se voltarem para outros artistas.

Essa flexibilidade obriga cada projeto a ter êxito imediato, sem o qual seus autores correm o risco de se ver novamente na miséria. Ela impede ao mesmo tempo as companhias e os dramaturgos de inscreverem sua evolução artística durante a temporada. Para equilibrar seu orçamento, os artistas ditos “livres” devem sempre correr atrás de “bicos”, em detrimento de sua pesquisa. E as diversas profissões do palco (cenógrafos, coreógrafos, maquiadores, pintores etc.) estão ameaçadas de desaparecer.

Os artistas devem enfrentar um enorme desafio: dar, ano após ano, geração após geração, um novo sentido ao teatro institucional. Muitos autores não avaliam sua chance de dispor de lugares subvencionados. Como eu, a maior parte está impregnada de uma cultura de hostilidade às instituições e observa com desconfiança esses grandes palcos de prestígio, nos quais a vaidade burguesa se pavoneou durante tanto tempo. No entanto, eles nos oferecem possibilidades de trabalho e meios de produção incomparáveis para contar uma outra história da sociedade.

Certamente, continuamos a ser os palhaços modernos de uma elite que aceita que zombemos dela a fim de desfrutar o privilégio de parecer tolerante e capaz de rir de si mesma. Abandonar esses lugares significaria, no entanto, cortarmos nossas asas e facilitarmos a tarefa daqueles que sonham nos tirar o pão da boca. Após 2008, um grande número de empresas nos Estados Unidos retirou o patrocínio, muito influente, da cultura norte-americana. Os atores pagaram caro por isso.

Além das condições materiais degradadas, vivemos uma crise estética, assim como uma crise dos conteúdos. Nos últimos anos, a criação teatral aderiu naturalmente às teorias nem sempre luminosas sobre a pós-dramaturgia e a “performance”. Curiosamente, as formas inovadoras que surgiram nos anos 1970 e 1980 continuam a orientar o credo estético de um grande número de teatros públicos e festivais, ainda que nesse assunto os imitadores estejam longe de se igualar a seus modelos. Os ingredientes dessa vanguarda insossa compõem uma papa cênica que passa por modelo do teatro moderno.

A poetologia desse teatro baseia-se na ideia de que a ação dramática não é mais de nossa época; que o homem não poderia se compreender como mestre de suas ações; que existem tantas verdades subjetivas quanto o número de espectadores presentes; que os acontecimentos representados no palco não exprimem nenhuma verdade válida para todos; que nossa experiência fragmentada do mundo somente encontra sua tradução num teatro fracionado, em que os gêneros se justaponham: corpo, dança, fotos, vídeos, música, palavra... Essa imbricação sensorial assegura ao espectador que este mundo caótico permanecerá para sempre indecifrável e que não há espaço para procurar ligações de causalidade ou culpados.

Como seu homólogo socialista, esse “realismo capitalista” estetiza uma ideologia vitoriosa, e não é menos peremptório que ela. Em um mundo dominado pela doutrina neoliberal, nada poderia dar mais prazer a seus beneficiários que estes pressupostos: ninguém é responsável por nada, e a complexidade do mundo torna ilusória toda tentativa de circunscrever seus mecanismos.

Evidentemente, nem todos os representantes do teatro pós-dramático aderem a essa visão. O trabalho de algumas figuras do teatro documentário, como o do coletivo alemão Rimini Protokoll1 ou o do dramaturgo suíço Milo Rau,2 que muitas vezes beira o jornalismo, parece mais esclarecedor que a maior parte das peças montadas habitualmente. Seu sucesso ilustra, à sua maneira, a crise do teatro tradicional, que, ao se concentrar no repertório clássico, se desconectou da realidade. Pouco preocupado em fornecer ao público um mínimo de reflexo de sua vida cotidiana, o estetismo clássico se fixou há trinta anos numa piedosa reverência ao passado.

No meio desse círculo fechado, ou dessa espiral descendente, o pacto que liga o teatro às disputas políticas e sociais de seu tempo se decompõe inexoravelmente. Mesmo que o jogo se ressinta disso, os atores vão buscar suas emoções nos grandes antigos mais do que em sua própria carne. Consequentemente, especialistas da vida cotidiana mostram-se mais inspirados para testemunhar o estado do mundo do que os atores clássicos, de quem no entanto é a função.

Aí está o nó da crise. Para sair dela, o teatro deveria pensar em fornecer aos seus atores uma formação inicial e contínua. Dramaturgo no Berliner Ensemble, Bertolt Brecht demandava a seus atores que se confrontassem com o real, que assistissem a audiências judiciárias, que adentrassem nas fábricas para compreender, com conhecimento de causa, o comportamento de seus contemporâneos. Faço o mesmo com os meus, convidando-os a se inspirar em sua própria biografia e em suas observações cotidianas.

Que efeitos o temor de ser relegado socialmente produz nos semelhantes? Como a obrigação de ter êxito afeta nossas emoções, nossos sentimentos, nossos desejos? Em que medida nossa vida privada se submete ao ditame da performance? Quantos futuros se quebram pela condição social do assalariado flexível? Por que dispomos de um vocabulário altamente refinado para analisar nossas relações conjugais, amorosas ou sexuais, enquanto tão cruelmente nos faltam palavras para descrever nosso fracasso político (“sistema deteriorado”)? Por que gostamos de alardear uma psicologia de boteco? Por que não tratamos com a mesma paixão desgastes sociais que se espalham há uns vinte anos, apesar de terem graves consequências em nosso corpo e nosso espírito – horários de trabalho extensíveis, quantificação do cotidiano, obrigação de permanecer disponível para contato permanentemente, mensagens profissionais recebidas por e-mail até tarde da noite, identificação total com a empresa que me emprega, como se eu fosse casado com ela? Vemos que essas realidades penetram até nos ossos das pessoas com quem cruzamos. Como explicar de outra maneira a recrudescência de artigos da imprensa sobre as doenças do trabalho, o estresse, a depressão, a síndrome de esgotamento profissional? A infiltração do pensamento econômico nos mais ínfimos vasos capilares da sociedade moderna deforma nosso corpo, desfigura nossos afetos.


Santuário habitado por uma força regeneradora

É disso que o teatro deveria falar. É isso que poderíamos representar no palco, e com talento, por menos que alimentássemos nossa imaginação com a fonte que se acha bem à nossa volta e que nos nutre. Em minha opinião, o teatro ideal guarda a promessa secreta de abordar todos esses assuntos.

Por seu financiamento público, o teatro institucional escapa ainda da lógica da competitividade, mesmo que seja verdade que as considerações de rentabilidade estejam ganhando terreno. Talvez a sociedade retomasse um pouco da confiança em si, se ela encontrasse alguns palhaços bem ousados para lhe apresentar um espelho, recolocá-la em questão, rir dela sem parar.

O teatro poderia ser assim: um santuário habitado por uma força regeneradora, quando as indústrias dedicadas à narração do mundo estiverem atormentadas por uma exigência de rentabilidade proporcional à sua falta de liberdade – basta ligar a televisão para se convencer disso. A frustração suscitada por mídias cada vez menos independentes explica, em parte, por que tanta gente, principalmente jovens, corre para o Schaubühne com a convicção de encontrar ali um lugar onde ainda se pode atuar e pensar livremente. Um lugar onde se podem ver no palco as distorções corporais de pessoas especialistas em flexibilidade.

Ao que se soma que, no teatro, tudo se desenvolve no momento: é impossível fazer várias tomadas ou modificar a montagem como no cinema. É aqui e agora que o ator experimenta seu papel e que o espectador, como especialista de sua própria percepção, decide se quer mesmo se envolver no jogo. Em nossa existência superdigitalizada, em que o real é mantido a distância por uma tela de duas dimensões, a missão e o desafio do teatro se resumem a este momento raro em que uma ação virtual reúne toda a realidade do mundo.

Thomas Ostermeier
Dramaturgo, é diretor do Schaubühne de Berlim
Ilustração: @.liz

1Nome que designa vários artistas cujas cenografias experimentais misturam teatro e realidade.

2 Dramaturgo e ensaísta suíço que trabalha em reconstituições teatrais (reenactment) de situações violentas: guerra em Ruanda, processo do casal Ceausescu na Romênia...

02 de Abril de 2013

A Desnarração

Os filmes desnarrativos de David Lynch
Por Humberto Pereira da Silva

O cineasta David Lynch autografa seu livro "Em Águas Profundas", na Livraria Cultura
Marcelo Mitidieri
Diretor americano, que lança livro no Brasil, coloca em xeque a lógica causal e os artíficios ficcionais do cinema
Dos cineastas em atividade, indiscutivelmente David Lynch se coloca entre os que mais geram curiosidade e expectativa, antes mesmo de seus filmes serem exibidos em festivais ou comercialmente.
De maneira geral, desde “Eraserhead” (1977) até “Império dos Sonhos” (2006), os filmes de Lynch provocam controvérsias, discussões, incompreensões. A crítica ora o venera como grande criador, ora o acusa de hermético e obsessivo. Seus filmes exibem personagens, situações, cenas insólitas que se situam no horizonte do nonsense, do realismo imaginativo, do aleatório (escapa ao catálogo, em certo sentido, “A História Real”, de 1999, como a que realçar o aspecto aleatório de sua obra). O que faz com que seu cinema flerte ao mesmo tempo com Lewis Carrol, Edward Hopper ou o compositor John Cage.
Mas, bem entendido, há um público para os filmes de Lynch. Um público que se esmera -tanto quanto os críticos- para decifrar o sentido de seus filmes, os quebra-cabeças que estão embutidos nas tramas, as pistas que o próprio Lynch lança em suas entrevistas invariavelmente lacunares.
Bem entendido igualmente que há um culto a David Lynch (o que se demonstra pelo frisson de público e crítica, que acorre para vê-lo), o que leva a que seus filmes sejam recebidos com o estatuto de obra de arte: não há obra de arte sem culto, e os filmes de Lynch não convidam o espectador a um entretenimento (a obra de arte prescinde do conteúdo importante das horas de lazer). A vinda do diretor ao Brasil, nesta semana, é também uma oportunidade para rever parte de sua obra cinematográfica.
A se destacar códigos narrativos incomuns, da filmografia de Lynch há três trabalhos em que está presente um leitmotiv básico: a trama segue uma ordem fugidia e vaga, até um ponto em que os acontecimentos se desconectam da ordem inicial, desponta uma outra trama, difusa, que pode se entrelaçar aos acontecimentos anteriores ou não. Esses três filmes são: “A Estrada Perdida” (1997), “Cidade dos Sonhos” (2001) e “Império dos Sonhos” (2006).

O que se pretende aqui é mostrar como nesses filmes estão presentes elementos de desnarração –como Lynch se utiliza de recursos de linguagem como elipses e flashbacks– e como é fundamental a compreensão da psicologia da percepção (da gestalt), para apreender sua ficção.
O que se propõe ressaltar com isso é que a utilização de elementos de desnarração, de recursos de linguagem e da psicologia da percepção não é –como poderiam objetar alguns críticos– mero exercício de estilo, pois, com isso o que se tem é a maneira com que Lynch, tanto em “A Estrada Perdida” quanto em “Cidade dos Sonhos” e “Império dos Sonhos”, expressa a maneira com que vê o mundo pela ótica do cinema.
Os recursos de linguagem utilizados por ele convidam o espectador a uma experiência estética tanto quanto a uma inflexão sobre a maneira como a narrativa por meio de imagens engana a percepção da realidade. Lynch recomenda que se veja um filme com atenção na imagem, na multiplicidade de possibilidades que ela oferece. Para quem se aproxima desses três filmes, o dado que mais salta a atenção é a ausência de referência para o espectador dar conta do fluxo narrativo. Uma imagem salta de um plano a outro inadvertidamente, na trama irrompem elementos, personagens, objetos que geram desorientação e incertezas.
A quebra de continuidade narrativa não é algo novo na história do cinema, mas Lynch a explora de maneira bastante incômoda: seus filmes atraem do mesmo modo que desconfortam.
Vale destacar que a “desnarração” é um termo que designa uma operação de contestação voluntária da narrativa. Com ela se tem em vista acabar com as diversas ilusões do espectador: ilusão realista e referencial da narrativa como reflexo do mundo real; ilusão da continuidade lógica pautada pela causalidade; ilusão de transparência, da neutralidade da narrativa.
Os procedimentos desnarrativos propõem-se a evidenciar o arbitrário da narrativa, seu aspecto simplificador em relação à complexidade dos diversos aspectos da realidade. Em “A Estrada Perdida”, “Cidade dos Sonhos” e “Império dos Sonhos” os procedimentos desnarrativos podem ser observados por meio do estilo dos diálogos, pelo privilégio da descontinuidade, pela iluminação incomum, por meio de objetos como um abajur, um telefone, um cinzeiro, a cor de um lençol, pelo emaranhamento da identidade das personagens e de personagens fugidios e de feição aterradora sem razão aparente. Esses são elementos que causam perda de referência para apreensão da narração nos filmes destacados.

“A Estrada Perdida”: o abandono da causalidade
Fred e Renne –o casal das primeiras seqüências de “A Estrada Perdida”– recebem fitas de vídeo com imagens da casa em que moram. A primeira mostra apenas o exterior da casa; a segunda o exterior e, a surpresa, o interior (daí, eles procuram a polícia para investigar como a casa teria sido filmada); a terceira, com uma câmara digital em movimento, mostra do exterior até o quarto do casal, onde ocorre o assassinato de uma mulher.
Fred é acusado de ter assassinado Renne e condenado a morte. Ele, atormentado, não parece ter ciência dos acontecimentos. Subitamente, na sela da penitenciária, há aparentemente uma troca de prisioneiros: Fred desaparece e surge Pete. Tudo é mostrado de forma elíptica, sem qualquer “explicação”.
Tem início então o que seria uma segunda trama, em que Pete se envolve com Alice, interpretada por Patrícia Arquette, que também fora Renne, na primeira trama. Renne e Alice são a mesma personagem com nomes diferentes? “A Estrada Perdida” exibe momentos que sugerem tratar-se da mesma personagem com nomes diferentes. Diálogos entre Alice e Pete remetem a acontecimentos vividos por Renne.
O recurso ao flashback é imediatamente aventado (frases soltas relacionariam as duas tramas). Ocorre que tudo pode não passar de uma “má coincidência”, como afirma, nas seqüências finais, o detetive que, na primeira trama, investiga o envio de fitas de vídeo para a casa de Fred e Renne e, na segunda, o assassinato do cafetão por trás de Alice.
De fato, não é possível pautar as tramas de “A Estrada Perdida” pelo princípio da causalidade: embora personagens nas duas tramas se entrelacem (um homem anônimo, estranho, onipresente e maquiado que ronda os passos de Fred e Pete com uma câmara, o cafetão com o qual Alice e Renne estão envolvidas), não há critério lógico pautado pela relação de causa e efeito que mostre ao espectador, por exemplo, que os acontecimentos da segunda trama antecedem os da primeira (o flashback não pode ser descartado, mas pode ser pensado como um falso flashback). O que se tem são situações, imagens cujo sentido cabe à imaginação do espectador compor.
Com isso, em “A Estrada Perdida”, a quebra de continuidade narrativa carrega a seguinte mensagem: os “fatos brutos” simplesmente ocorrem; é tudo que acontece; a linguagem para descrevê-los –no caso do cinema, as imagens– é incompleta, lacunar, vaga. Quando se narra, operam-se cortes, rupturas, fazem-se escolhas.
Uma narrativa fechada, com começo, meio e fim, na perspectiva de Lynch, apenas ilude que capta a realidade, pois a realidade em “estado bruto” não é captada. Com isso, a opção pela desnarração. Com ela, cabe à imaginação dar sentido ao lacunar, ao impreciso. Lynch reforça que narrar é de algum modo apelar para a imaginação. A desnarração quebra o hábito de “explicações” fechadas pelas imagens. Para ele, como na vida, a narrativa fechada ilude que se possa explicar o que está por trás dos “fatos brutos”.
A se considerar, portanto, que Lynch exibe objetos, situações que sugerem importância para a decifração da trama, mas que não seriam percebidos quando o espectador tem em vista a instância diegética, ou seja, as personagens, a paisagem, os acontecimentos porquanto sejam considerados em seu estado denotado (um figurino é mais que um figurino, como uma cadeira Luis XIV é mais que uma cadeira).
Depois de assassinar o cafetão, Pete, que está com Alice, vê uma foto com a imagem de Alice e Renne. Nela estão também o cafetão e um gângster, Dick Laurant, que trata Pete como filho e é amante de Alice. Quando o detetive chega para investigar o crime, naquela que seria a mesma foto vê-se apenas Renne e os outros dois -e não mais Alice.
Entre os dois acontecimentos, uma elipse, cabe ao espectador, extrair estruturas, configurações, formas de conjunto (Gestalt) e não adicionar elementos pontuais de percepção. Como nas figuras de Gestalt, talvez não se perceba que Alice “desapareceu” na foto vista pelo detetive. O que importa, no entanto, é que o “desaparecimento” de Alice implica no ressurgimento de Renne, que não faria parte da segunda trama.

“Cidade dos sonhos”: imprecisão e critérios para compreensão
O mesmo leitmotiv de “A Estrada Perdida” é seguido nos dois filmes posteriores aqui arrolados: “Cidade dos Sonhos” e “Império dos Sonhos”. No primeiro, uma aspirante a atriz (Betty) chega a Hollywood com a determinação de se tornar estrela de cinema. Hospeda-se na casa de sua tia e tem uma surpresa: encontra uma mulher que acabara de sofrer um acidente e, supostamente, perdeu a memória (ao ver no banheiro um pôster de Rita Hayworth, adota o nome Rita). Ambas tentam “descobrir” quem é de fato a acidentada.
Trata-se de uma primeira trama que se desenrola como filme de gênero noir: uma mulher envolta em mistério, talvez perseguida por gângsteres; uma caixa com uma chave azul é encontrada na bolsa dela.
Nessa primeira trama, há paralelamente um cineasta (Kesher) que tem dificuldade para realizar seu filme e se entrelaça às vidas de Betty e Rita. Por meio de elipses e "faux-raccords", o fecho da primeira trama se dá com a abertura da caixa azul, depois que ambas visitam, com a intenção de descobrir quem é Rita, uma casa noturna chamada “Clube do silêncio”, onde ouvem um estranho locutor dizer: “Tudo é ilusão”.
Em “Cidade dos Sonhos” há mistério, um clima surrealista próprio de outros filmes de Lynch, mas a narrativa segue uma cronologia previsível: ambas querem saber quem é Rita. Essa é a expectativa que Lynch desperta no espectador (Em “A Estrada Perdida”, na primeira trama, há um clima mais tenso e indefinido: o envio de fitas de vídeo, o assassinato que é mostrado por meio de uma imagem chuviscada, perde sentido com o “retorno” de Renne nas cenas finais). Mas, de repente, num nível mais surpreendente que em “A Estrada Perdida”, a história de "Cidade dos Sonhos" muda de rumo.
Betty passa a ser Diana, Rita torna-se Camila, e uma trama de lesbianismo (as duas são amantes), vingança e assassinato se desenrola. Camila/Rita protagoniza filmes da indústria hollywoodiana, Diana/Betty teve a carreira abortada. Nessa segunda trama, Diana/Betty é um personagem atormentado: abandonada por Camila/Rita, contrata alguém para assassiná-la. No fecho, que remete à seqüência de abertura com os créditos do filme, Diana/Betty comete suicídio.
Não se trata aqui, no entanto, ao contrário de “A Estrada Perdida”, de interrogar se ambas são a mesma personagem com nomes diferentes. Em “Cidade dos Sonhos”, as duas tramas estão separadas de tal forma que a questão é saber se uma é “sonho” e outra “realidade”.
Uma sugestão possível é que a segunda trama seria do domínio da realidade, e a primeira, domínio do sonho. Sendo assim, Diana/Betty e Camila/Rita seriam personagens distintas. Mas Lynch emaranha imagens, objetos, situações que não permitem fazer afirmação definitiva. Ele joga ao espectador possibilidades cujo sentido cabe à imaginação compor. O que se tem com isso, em “Cidade dos Sonhos”, principalmente, é a ilusão de neutralidade narrativa. As duas tramas situam-se em jogos com critérios e regras distintas.
Há semelhanças, pontos de contato, entre as tramas, mas elas são fugazes, são pistas que confundem a percepção (como as figuras de Gestalt): um telefone toca, um braço indefinido surge e o atende. Mas, a se considerar que são jogos com critérios e regras distintas, Lynch exige do espectador atenção em cada trama isoladamente. A quebra de neutralidade forçaria o espectador a procurar as regras que dariam um sentido a cada trama. Na medida em que se tenta ligar as duas tramas, o sentido desaparece.
O que as liga são imagens, objetos –a chave azul, os óculos do cineasta-, diálogos sobre o filme que Kesher teria feito, um estranho vaqueiro com indagações metafísicas. Mas essa ligação é tênue, imprecisa, quando se busca uma apreensão mais exata, em conformidade com a lógica com que o cinema se habituou a narrar uma história, mesmo aquelas de conteúdo onírico.


Fonte: www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/2999,1.shl
www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/2999,1.shl

banco de imagens


Parágrafo 04.


sábado, 27 de abril de 2013

Walter Benjamin

Usando uma citação de Walter Benjamin, aprendemos que tudo um dia chega ao fim, mas pensar sobre o passado é uma tarefa contínua: depende da maneira como você se lembra do que vivenciou.

banco de imagens

Parágrafo 05.

Pego um novelo de lã. Puxo uma das pontas e começo a desenrola-lo (como um trem sobre o trilho) delimitando um grande círculo no espaço, com o interior vazio.

banco de imagens

Parágrafo 52.

Retiro toda a minha roupa, dobrando cuidadosamente cada peça. Agora tenho em mãos 05 gazes. Começo a enfaixar todo o meu corpo, começando pelos pés e em direção a cabeça.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

os parágrafos, capítulos, poemas...

na última ordem que fiz...

0

AGORA (34)
1
2
4
11
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14
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19
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27
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59
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71
74
94
95
99
100
104
106
107
109
110
112
114

AMOR (13)
8
9
28
31
32
37
41
43
49
55
74
89
113

CIDADE (15)
16
21
23
38
42
45
61
62
63
78
86
105
88
90
92

IRMÃ BORDADO (5)
29
65
75
81
102

IRMÃ GATO (3)
77
85
108

IRMÃ GLOBO (1)
93

IRMÃO VIDRO (7)
20
57
68
73
80
96
101

MADRASTA (10)
6
11
24
33
34
51
64
70
91
83

MÃE (14)
3
5
10
15
17
25
26
35
48
50
58
87
84
98

PAI (7)
7
12
54
56
60
67
76

TOMATE (8)
7
40
72
79
97
82
111
103

perda...construção

Significado de Perda

s.f. Ato ou efeito de perder ou ser privado de algo que possuía.
Diminuição que alguma coisa sofre em seu volume, peso, valor.
Prejuízo financeiro.
O ato de não vencer.
Militar O mesmo que baixa, em combate.
Mau emprego: perda de tempo.
Teologia Danação: causar a perda de uma alma.
Perdas e danos, prejuízos sofridos pelo credor, em virtude de diminuição do seu patrimônio e também por causa de lucros que deixou de perceber.
Perdas brancas, designação popular da leucorréia.
Perdas vermelhas, designação popular da metrorragia.
loc. adv. Em pura perda, em vão, inutilmente.

Significado de Construção

s.f. Ação de construir: construção de uma casa, de uma barragem; construção de um automóvel.
Edifício construído.
Disposição das partes de um edifício, automóvel, avião, navio: plano de construção.
Composição, elaboração: construção de um poema.
Gramática Disposição dos termos da oração.

 

maré...repuxo

A maré vermelha é uma aglomeração de micro-planctons pirrófitas que raramente acontece em alguns determinados locais na superfície das águas.





REPUXO
s.m. Aço ou efeito de repuxar.
Construção para a condução da água que faz com que ela se eleve em jato contínuo.
Arquitetura. Peça que sustém um pé de arco; botaréu.
Obra de suporte nas minas.
Movimento de recuo, coice.
Bras. Fam. Encargo pesado, tensão: não suportar o repuxo.
 

terça-feira, 23 de abril de 2013

páginas soltas ---

Sem divisões de capítulos, Vermelho amargo tem como única marcação a diminuição do número de integrantes da família, em uma contagem regressiva. Começa com oito pessoas e termina com duas – deslocadas na distância, pois o narrador já tinha deixado a casa paterna para poder olhá-la através da névoa da memória.

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O que me faz ver essa história também como um livro de poesia, com uma linha narrativa mas todos os microcapítulos do romance podem ser separados no todo, pois há uma mundo de significação próprio deles e há um aquela significação que dentro do contexto se transforma como o tomate que é hora visto com carinho, outras como elemento de segregação, em um momento é somente o sabor que importa, em outros representa o próprio estado do narrador para com o mundo.

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Essa linguagem avessa ao realismo e aberta a construções requintadas se fez a marca do autor. Ele não quer descrever com minúcias os fatos vividos no passado, mas encontrar o seu centro simbólico e construir percepções de linguagem. Antes de tudo, são as palavras em estado de proliferação poética que conduzem o texto – palavras com alta voltagem lírica, concentradas em frases perfeitas (verdadeiros aforismos) e em parágrafos curtos que funcionam como capítulos. Os seus livros devem, por isso, ser lidos com paradas reflexivas a cada ponto final.

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Sinestesia é a figura de linguagem que engloba a expressão Vermelho amargo, uma combinação poderosa das sensações provocadas por diferentes órgãos sensoriais: vista e palato.

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Natureza morta com tomates, 2008
Deb Kirkeeide (EUA, contemporânea)
óleo sobre tela, 15 x 20cm

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O ponto de partida é a perda da mãe. E as meditações, centradas na imagem de um tomate, são seu testemunho sobre as mudanças na família a partir daquele momento. Como o título prenuncia, é amarga a descoberta da vida após a perda materna.

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É relato repleto de poesia, conversa de gente grande, obra que nos enche de contraditórios sentimentos. Atravessá-la é tomar ciência da dor que existir forçosamente recomenda. Afinal, é preciso "experimentar o prazer para, só depois, bem suportar a dor"...

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É assim que o livro começa. E é sabendo desse amargor que vamos acompanhando cada parágrafo, vendo a figura de um menino se desenhando ao nosso lado. Um menino de olhos tristes e corpo cansado falando sobre a dor de existir e sobre as suas perdas. Em uma luta constante pela sobrevivência.

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segunda-feira, 22 de abril de 2013

Kyle Thompson e seu mundo surreal










Kyle Thompson nasceu em Chicago em 11 de janeiro de 1992. Ele começou a tirar fotografias com 19 anos. Seu trabalho é na maioria das vezes composta por auto-retratos surrealistas e bizarras, muitas vezes ocorrendo em florestas vazias e casas abandonadas. Kyle não possui nenhuma formação acadêmica fotográfica.

A palavra que defina a temática de cada parágrafo


0- Necessidade
1- Mentiras
2- Dor
3- Cura
4- Consciência
5- Vazio
6- Ritual
7- Ameaça
8- Ambrosia
9- Busca
10- Adues
11- Palavra
12- Ciúme
13- Verdade
14- Aturdido
15- Carinho
16- Cotidiano
17- Trama
18- Paciência
19- Incurável
20- Circo
21- Espelho
22- Cicatriz
23- Música
24- Prisão
25- Magia
26- Lembrança
27- Anjos
28- Amor
29- Liberdade
30- Espelho
31- Descoberta
32- Segredo
33- Ritual
34- Química
35- Rendas
36- Aroma
37- Despertar
38-Rosas
39- Mentira
40- Reinado
41- Corpo
42- Santidade
43- Paixão
44- Carga
45- Alfaiate
46- Perguntas
47- Pele
48- Promessa
49- Indispensável
50- Bens
51-Bruxa
52- Fundo
53- Decifrar
54- Estrelas
55- Pecador
56- Pai
57- Gratidão
58- Receitas
59- Vazios
60- Mortadela
61- Sombrinha
62- Indefeso
63- Trem
64- Comida
65- Agulhas
66- Mar
67-Punhais
68- Vidros
69- Créditos
70- Desgostosa
71- Orfão
72- Pesadelo
73- Irmanado
74- Saudade
75- Bordadeira
76- Barbear
77- Gato
78- Cartilha
79- Sapos
80- Contemplação
81- Cruz
82- Sete
83- Sujeira
84- Dolorida
85- Muda
86- Nó
87- Proteção
88- Fofoqueira
89- Intensidade
90- Assombração
91-Execução
92-Lamentos
93- Orfã
94- Sempre
95- Sozinho
96- Desaparecido
97- Seis
98- Semelhanças
99- meio-termo
100- Nomeando
101- Amigo
102- Desaparecida
103- Vitórias
104- Maio
105- Curioso
106- Vida
107- Escola
108- Separação
109- Legendas
110- Vazio
111- Rosário
112- Partida
113- Ausência
114- Depois

Uma Palavra

Uma palavra para resumir cada um dos episódios do texto, do nosso relato dramático:

0- alívio                                 
1- saudade                          
2- dor                                   
3- beijo                                 
4- nascimento                      
5- destino                         
6- frieza                                 
7- fome                          
8- carência                        
9- religião                              
10- morte                            
11- revelação                         
12- paixão                           
13- verdade                           
14- aturdido                           
15- carinho                            
16- segredos                          
17- presença                          
18- pedras                             
19- lembrança                        
20- circo                                
21- metade                             
22- tempo                              
23- abandono                         
24- sequestro                         
25- literatura                       
26- ausência                    
27- anjos                         
28- amor                           
29- secura                          
30- desconforto                     
31- entrega                            
32- felicidade                         
33- espancamentos           
34- sal                                    
35- costuras                           
36- cheiros                             
37- amor                                 
38-jardim                                
39- mentira                               
40- refeição                            
41- corpo                                 
42- decepção                            
43- entrega                                
44- suportar                               
45- suspeitar
46- perguntas
47- memória
48- fé
49- amor
50- casa
51-fogão
52- fundo
53- percepção
54- brincar
55- pecado
56- relógio
57- compaixão
58- delicadeza
59- ausência
60- pai
61- sombrinha
62- galinha
63- trem
64- comida
65- agulhas
66- mar
67-pai
68- vidro
69- amor


70- ferozmente
71- vagão
72- verde
73- escrever
74- saudade
75- bordado
76- barba
77- gato
78- doce
79- espanto
80- caminhão
81- casamento
82- espessas
83- raiva
84- música
85- mudo
86- dúvida
87- remendar
88- dissimular
89- boca
90- almas
91-exatidão
92-habitantes
93- globo terrestre
94- eterno
95- solidão
96- pássaro
97- substância
98- semelhança
99- crepúsculo
100- palavras  
101- pintassilgo
102- correio
103- despedida
104- passado
105- destinos
106- lágrimas
107- escola
108- gato
109- nomear
110- irmãos
111- ritual
112- abandono
113- memória
114- partida
 

domingo, 21 de abril de 2013

Dispositivos






Ação Dramática: Escorrer Vermelho Sobre O Branco



Jackson Pollock em ação.

3, 4 e 5

Nestes ensaios, encontramos duas coisas que considerei alicerces para a encenação que estamos buscando: 

1. A noção de duplo entre Daniel e Davi: gosto de pensar que os dois atores, os dois performers, apesar de distintos, diferentes, executam a mesma função. Estão os dois a destilar o vermelho amargo sobre o espaço branco (da encenação). No entanto, lá onde um cessa o movimento ou a fala, por não conseguir, o outro permite que a ação continue. Um é extensão do outro. Um pulo de um alcança pelo corpo do outro altura distinta, maior, ainda mais possível. Juntos e diferentes os dois se aumentam, um pelo outro, se estendem. Não há rivalidade, não há intriga nem drama entre os dois. São dois porque são um só. Dois atores num jogo mútuo de perda e construção.

2. Sobre como falar esse texto: a princípio, é preciso limpar as formas de falar. É preciso falar. Sem antes nem depois, sem intenção nem mistério. Tudo é claro feito conversa de bar, conversa cotidiana. Tudo é limpo e sem excesso. É falar. Abrir a boca e dizer, sem se condenar pelas ideias, desejos, vontades, memórias e teatralidades. Não há linguagem, há língua destemida cortando o ar e flechando palavras. A palavra traz em si muita coisa (não precisa de mais acompanhantes). Depois, lá na frente, só depois, faremos delas algo mais, algo menos, mexendo sua vibração descortinaremos outros sentidos possíveis. Mas por agora é ser curto e grosso. As palavra, Davi, terminam nelas não nas reticências, não nas exclamações. As palavras acabam em si próprias, o resto é invenção.

Pergunte-me muito sobre qual era a relação com as lembranças. Como o menino vê aquilo que o autor revela? Como o homem (já mais próximo do autor) enxerga as mesmas coisas? Precisamos sublinhar todas as dores ou tais dores podem ser apresentadas de maneiras distintas, por olhares diferentes (o do menino, o do homem, o olhar do ator?).

Quais os fios da narrativa? Do que se fala? Improvisamos com lugares dados (onde: quarto/corredor + quem: o menino/o homem + o quê: a tentativa de recriar relação com... + quando: após 1 cigarro/antes do café da manhã).

Nos saltaram alguns pontos durante experimentações feitas em sala de ensaio:

- visualizar o espaço de ontem e o de agora;
- ao brincarem o duplo, percebe-se aquilo que escrevi no meu caderno: quase uma anulação da consciência individual em prol do duplo de si mesmo;
- muito importante a descoberta dos meninos no trecho em que o autor fala da ida para a escola e das descobertas decorrentes: Davi e Daniel se abraçaram, como se tivessem descoberto a si próprios: A MATRÍCULA NA ESCOLA COMO O ABRAÇO EM SI MESMO.

O texto tem que ser ação, puro acontecimento. O espaço vazio receber o gesto, a forma, o movimento e permite que nele tudo isso se grave. Com tinta invisível, o espectador vai montando o espaço, o lugar, a memória.

Sobretudo, saber que os atores são autores e que não há representação, mas sim presentação!

Composições, novas descobertas --- Daniel esmiúça o drama, Davi se coloca por cima. Como podem os dois atores se contaminarem com o ponto de vista do outro?

Dominique trabalhou alguma fisicalidade, o corpo como start da dramaturgia. ATURDIDO/PARTIDA. Trabalhamos o percurso, a criação de gestos e a topografia. Usamos num mesmo gesto diferentes trechos do romance. E então, os meninos nos brindaram com suas composições a partir de suas respectivas mães:

DAVI caixa preta cadeira cubo preto gaze nudez O CORPO FICOU VERMELHO DE VERGONHA OU DE PRESENÇA pequenos gritinhos o corpo cheio de vermelho COBRIR O VERMELHO DO CORPO COM A GAZE porque descobrimos que o vermelho está no corpo.

DANIEL camisa branca furada mais que isso dilacerada na altura do coração proximidade olhos fechados foto da mãe junto (acidentalmente?) a um cupom fiscal NA FOTO CHAPEUZINHO DE FESTA E GRAVATA ele no colo da mãe? OS OLHOS DELE SÓ ABRIRAM QUANDO A CONSCIÊNCIA CHEGOU, A CONSCIÊNCIA DA PERDA ele nos chamou VEM CÁ...

Adiante ---

He starts to read it out loud and doesn’t stop.

GATZ
James Gatz — that was really, or at least legally, his name.

One morning in the shabby office of a mysterious small business, an employee finds a copy of The Great Gatsby in the clutter on his desk. He starts to read it out loud and doesn’t stop. At first his coworkers hardly notice. But after a series of strange coincidences, it’s no longer clear whether he’s reading the book or the book is transforming him.

8 hours long and with a cast of 13, Gatz is by far ERS’s most ambitious endeavor yet — not a retelling of the Gatsby story but an enactment of the novel itself. Fitzgerald’s American masterpiece is delivered word for word, startlingly brought to life by a low-rent office staff in the midst of their inscrutable business operations.

The most remarkable achievement in theater not only of this year but also of this decade.
—Ben Brantley, The New York Times

A strangely seductive, often revelatory, and altogether ingenious production…
—Hedy Weiss, Chicago Sun-Times

…One of the few ovations for which I have unreservedly stood.
—The Independent, London


Espetáculo da companhia ELEVATOR REPAIR SERVICE [http://www.elevator.org/]

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quarta-feira, 17 de abril de 2013

"A Face Oculta da Natureza"

Trecho deste livro, de Anton Zeilinger, sobre física quântica.
Lembrei dos nossos 3 primeiros ensaios:

"Só com o aprimoramento contínuo da experiência, tornando-a mais e mais exata, é que se consegue chegar realmente aos segredos da natureza e medir o que está acontecendo".

Adriana Varejão








"Desvio para o Vermelho", de Cildo Meireles





terça-feira, 16 de abril de 2013

one and only ---

o momento é esse. somos ainda página em branco para todo e qualquer desastre. portanto, especular, testar, criar, volver, ruir, rachar...

Viewpoints / Pontos de Vista


PONTOS DE VISTA
TEMPORAIS
PV_A N D A M E N T O
ANDAMENTO
A taxa de velocidade em que um movimento ocorre; quão rápido ou lento algo acontece no palco.

PV_D U R A Ç Ã O
DURAÇÃO
Quanto tempo um movimento ou sequencia de movimentos age. DURAÇÃO, em termos do trabalho com pontos de vista, está especificamente relacionada a quanto tempo um grupo de pessoas trabalhando juntas permanece dentro uma determinada seção de movimento antes que este se modifique.

PV_R E S P O S T A_K I N E S T É T I C A
RESPOSTA KINESTÉTICA
Reação espontânea ao movimento que ocorre fora de você; o tempo dentro do qual você responde a eventos externos de movimento ou som; o movimento impulsivo que acontece a partir de uma estimulação dos sentidos. Exemplo: alguém alguém bate uma palma na frente de seus olhos e você pisca em resposta, ou alguém bate uma porta e você impulsivamente se levanta da sua cadeira.

PV_R E P E T I Ç Ã O
REPETIÇÃO
REPETIÇÃO de algo no palco. REPETIÇÃO inclui (1) REPETIÇÃO INTERNA (repetindo um movimento dentro do seu próprio corpo); (2) REPETIÇÃO EXTERNA (REPETIÇÃO da forma, andamento, gesto, etc., de algo que se dá fora do seu próprio corpo).

PONTOS DE VISTA
ESPACIAIS
PV_F O R M A
FORMA
O contorno que o corpo (ou corpos) faz(em) no espaço. Toda FORMA pode ser dividida em FORMA com (1) linhas; (2) curvas; (3) uma combinação de linhas e curvas.
Portanto, no treinamento com PONTOS DE VISTA, nós podemos criar FORMAS que são arredondadas, formas que são angulares e formas que são uma mistura dessas duas.
Somado a isso, uma FORMA também pode ser (1) sem movimento; (2) em movimento (pelo espaço).
Por último, FORMA pode ser feita por uma das três maneiras: (1) com o corpo no espaço; (2) com o corpo em relação com à arquitetura (criando FORMAS); (3) o corpo em relação com outros corpos (criando FORMAS).

PV_G E S T O
GESTO
Um movimento envolvendo uma parte ou partes do corpo; GESTO é FORMA com início, meio e fim. GESTOS podem ser feitos com as mãos, os braços, a cabeça, a boca, os olhos, os pés, o estômago, ou qualquer outra parte ou combinação de partes que possam ser isoladas. O ponto de vista GESTO é dividido em:
1. GESTO COMPORTAMENTAL. Pertence ao concreto, ao mundo físico do comportamento humano da forma como observamos em nosso dia-a-dia. É o tipo de gesto que você vê num supermercado ou metrô: alguém riscando um papel, apontando, cheirando um alimento, cumprimentando outro alguém, fazendo uma saudação. Um GESTO COMPORTAMENTAL pode dar informações sobre o caráter, sobre uma época, saúde física, uma circunstância específica, clima, roupas, etc. Geralmente é definido pelo caráter de uma pessoa ou pela época e local nos quais ela vive. Também pode ter um pensamento ou intenção por trás. Um GESTO COMPORTAMENTAL pode ser dividido e trabalhado em GESTO PRIVADO e GESTO PÚBLICO, distinguidos por ações que são feitas quando sozinho ou quando sob atenção ou proximidade de outros.
2. GESTO EXPRESSIVO. Expressa um estado interior, uma emoção, um desejo, uma ideia ou valor. É abstrato e simbólico em vez de representativo. É universal e atemporal e não é algo que você veria alguém fazendo normalmente num mercado ou metrô. Por exemplo, um GESTO EXPRESSIVO deve ser expressivo de, ou capaz de veicular, emoções como “alegria”, “dor” ou “raiva”. Ou deve expressar a essência interior de Hamlet como um dado ator a sente. Ou, numa produção de Tchékhov, você pode criar e trabalhar com GESTOS EXPRESSIVOS do tempo ou para expressar “tempo”, “memória” ou “Moscou”.

PV_A R Q U I T E T U R A
ARQUITETURA
O ambiente físico no qual você está trabalhando e como a consciência dele afeta o seu movimento. Quantas vezes assistimos à peças em que há um cenário suntuoso e intricado cobrindo todo o palco e os atores, ainda assim, permanecem com dificuldade na exploração da arquitetura que os envolve? No trabalho da ARQUITETURA como ponto de vista, nós aprendemos a dançar com o espaço, a estar em diálogo com a sala, a deixar o movimento (especialmente FORMA e GESTO) evoluir para fora de nosso próprio espaço. ARQUITETURA é dividida em:
MASSA SÓLIDA. Paredes, chãos, tetos, mobiliário, janelas, portas, etc;
TEXTURA. Se a massa sólida é de madeira ou metal ou tecido modifica o tipo de movimento que criamos em relação com ela;
LUZ. As fontes de luz na sala, as sombras que fazemos em relação a estas fontes, etc;
COR. Criando movimento a partir das cores no espaço, como uma cadeira vermelha entre inúmeras outras pretas afetaria a nossa coreografia em relação a ela;
SOM. Som criado pela arquitetura e a partir dela, o som dos pés no chão, o ranger de uma porta, etc.
No trabalho com ARQUITETURA nós criamos metáforas espaciais, dando forma a sentimentos como “eu estou contra a parede”, “preso entre as rachaduras”, “preso”, “perdido no espaço”, “no limiar”, “alto como uma pipa”, etc.

PV_R E L A Ç Ã O_E S P A C I A L
RELAÇÃO ESPACIAL
A distância entre coisas no palco, especialmente (1) um corpo para outro; (2) um corpo (ou corpos) para um grupo de corpos; (3) o corpo para a arquitetura.
Qual é a gama total de possibilidades de distâncias entre coisas no palco? Que tipos de agrupamentos nos permitem ver com maior clareza uma imagem no palco? Quais agrupamentos sugerem um acontecimento ou emoção, expressam uma dinâmica? Tanto na vida real como no palco, nós tendemos a nos posicionar a dois ou três pés de distância de quem estamos conversando. Quando começamos a atentar para a possibilidade expressiva da RELAÇÃO ESPACIAL sobre o palco, começamos também a trabalhar com menos educação, porém, com distâncias mais dinâmicas de extrema aproximação ou extremo afastamento.

PV_T O P O G R A F I A
TOPOGRAFIA
O panorama (a vista), o padrão de piso, o design que criamos em movimento pelo espaço. Na definição da vista, por exemplo, podemos decidir que a área mais baixa do palco tem grande densidade, o que dificulta o movimento através dela, enquanto a área de cima tem uma densidade menor e, portanto, envolve maior fluidez e tempos mais rápidos. Para entender o padrão de piso, imagine que o fundo dos seus pés estão pintados de vermelho; assim que você se movimento pelo espaço, a imagem que se forma no chão é o padrão de piso que evolui no correr do tempo. Em adição, uma encenação ou marcação de uma performance sempre envolve escolhas sobre o tamanho e a forma do espaço em que trabalhamos. Por exemplo, nós podemos escolher trabalhar em uma faixa estreita de três pés por toda a área baixa do palco ou numa enorme forma triangular que cobre todo o chão, etc.

\\
BOGART, Anne; LANDAU, Tina. The Viewpoints Book – A Pratical Guide to Viewpoints and Composition. Tradução de Diogo Liberano. New York: Theatre Communications Group, 2005, p. 8-12.

1 e 2

Começamos nesta segunda 15 de abril os ensaios de Vermelho. Teremos algumas semanas, duas ou três, de abertura e atravessamento. Estamos fazendo a nossa leitura da obra, leitura esta feita com todo o corpo. Os corpos dos atores, o meu, o corpo da Dominique (assistente de direção). É época de perguntar, mais que responder. Época de arriscar, mais que fechar, mais que se comprometer.

Seguimos especulando sentidos e também testando o corpo. Fazendo as perguntas que não sabemos responder. Horas com o texto na boca, no chão, multiplicando nomes, expressando vontades e coisas sem definição. Se Bartô escreveu o romance, nós agora precisamos inscrever nossa leitura do mesmo; interpretação.

Aos meninos, atores-performers, cabe a ousadia de se deixar ainda durante vários ensaios apenas em busca, no meio do caminho. Disse Vera Holtz que estamos montando um Vermelho Amargo, ou seja, o nosso ponto de vista dos fatos. Que divertido e incrível é descobrir novas vozes para a nossa mesma voz.

Conceitualmente, as possibilidades vão se anunciando. Mas creio ser preciso deixá-las se perderem de nós, para que voltem revestidas de afeto. Estamos judiando o texto, atravessando à força as linhas parágrafos e toda a poesia.

Qual é a ação dramática deste Vermelho Amargo?

O texto de Bartô ainda opera na íntegra. Daqui a pouco, continuará operando, mas já não sabermos se se tratará do romance ou do pleno presente compartilhado com a platéia.

Mais uma vez, agora é seguir...